Não há regras para boas fotos, apenas há boas fotos
(Ansel Adams)

sábado, 16 de fevereiro de 2013

UMA FOTO, UMA LEITURA

 
 
Nevoeiro
 
O meu corpo funde-se nas rugosidades que arquitetam os traços históricos desta cidade misteriosa e invicta que acorda para mais um dia. O meu corpo, denso e rarefeito, deambula neste matinal, passeio-me por cada espaço, por cada aresta desta urbe, desde o chão pincelado pelo brilho orvalhado da neblina – ora de alcatrão, calçada ou mesmo de paralelos gastos e escuros – até que termino o vagueio diário, e quando finalmente consigo ficar com o meu corpo totalmente espalhado como um cobertor que se instalou no ar, planando um ambiente escuro e ambíguo, levanto-me ao mesmo ritmo da vida da cidade, ao mesmo ritmo destas pessoas que fazem deste Porto tão característico, destas pessoas que encaram todos os dias com a mesma esperança, com a mesma certeza que por detrás de mim, que atrás deste cinzento escuro, chegará um novo dia, um dia que poderá ser melhor do que o anterior...
 
Os dias seguem-se numa rotina instalada; desde o cheiro exalado pelas padarias do pão acabado de cozer, cheiro quente que conforta a brisa matinal; o perfume da mistura das flores frescas que se acomodam nas bancas das floristas avivando o ar denso e rarefeito que emano; o “ardina” que coloca os jornais nas portas das tabacarias, presos por um fio que os aperta e pelas notícias que os sufoca; os primeiros carros a passar com as luzes ligadas a trespassar o meu corpo denso e rarefeito. Tudo se afigura igual ao dia que passou, tudo promete ser uma repetição do que já foi, mas tudo pode ser diferente.
 
O meu corpo que se espelhou pela cidade vai começar a levantar-se e, dentro em breve subirei, mas não deixarei de estar presente na imagem que caracteriza esta cidade, estarei bem lá no alto a ver mais um dia passar, um dia que pode ser igual ao anterior ou um dia que pode ser o da mudança.
 
Algures neste corpo que se espalhou pela cidade sinto uma prurido, um afagar, um esgravatar, não consigo decifrar onde, apenas o sinto, apenas sei que é distinto do habitual, apenas sei que o dia já não é igual aos outros. Como um cão que roda em si mesmo tentando ferrar a sua cauda, remexo-me, inquieto, inseguro, à procura desta sensibilidade que não sei o que é e que se agudiza, busco-a cada vez mais agitado, cada vez mais com uma ansiedade curiosa. A cada segundo que passa o escarafunchar torna-se mais intenso, mais incerto e desacertado, mas mais profundo. O meu corpo deixa-se pairar na cidade mais tempo que o habitual à procura da razão daquela novidade que está já a tornar este dia especial.
 
Depois de muito me revolver, e à medida do aumento daquela sensação, descubro aquelas mãos pequenas e rechonchudas a investigar o meu corpo denso e rarefeito. Primeiro vejo os seus dedos pequenos, depois as mãos rechonchudas e, num desatino infantil, dá-se um esbracejar desconcertante a furar o meu corpo, deixando um buraco grande que se dissolve no ar. Aproximo o meu olhar intenso e fixo-o naquela criança de olhos azuis celeste, que continuando a esburacar o meu corpo denso e rarefeito, e olhos nos olhos, emite uma gargalhada inocente que me evapora.
 
Hoje, foi o princípio dos dias melhores que os anteriores. 
 
FOTO - ANTÓNIO TEDIM
TEXTO - RUI SANTOS ( www.cognitare.blogspot.com )
 

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