Não há regras para boas fotos, apenas há boas fotos
(Ansel Adams)

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

UMA FOTO, UMA LEITURA






                                             Lado a lado

As águas calmas da lagoa ondulavam-se num movimento harmonioso acariciando levemente o barco, cândido e imaculado, construído com madeiras novas, pintadas de um branco singelo, mas ao mesmo tempo denso e compacto. Sentamo-nos cada um na sua ponta, deixamo-nos embalar sob o sol jovem, forte e quente, com os olhos fixos um no outro e o sorriso a preencher-nos a cara jovem e apaixonada.

Sem perdermos tempo agarramos nos remos com as duas mãos e, em uníssono, remamos com o fulgor de quem sentia que o mundo podia acabar no minuto seguinte, sempre de olhos fixos um no outro, sempre em uníssono, sempre com um sorriso que nos preenchia, que nos dava forças para continuar. Fizemo-lo durante dias, semanas, meses, anos, fizemo-lo naquele barco que começava a ficar com a tinta gasta e baça, com a madeira a começar a abrir pequenas fendas, sob o sol a envelhecer e a perder calor, com os olhares a perderem-se no ruído que nos rodeava, com as braçadas a perderem lentamente a sintonia, mas a remarmos, ainda que cada vez com menos fulgor.

O barco continuava o seu percurso, em boa verdade, porque tu remavas mais do que eu, em boa verdade eu percebi isso e não fiz nada para alterar esse estado, nem sempre estive atento para ver se precisavas que te substituísse, já para não falar de remarmos juntos, com a mesma vontade, com o mesmo esforço, de olhos colados um no outro, a brilharem do mesmo entusiasmo, ou simplesmente a remarmos juntos, ainda que fosse de forma descoordenada, mas ao menos remávamos juntos, ou não foi por isso que entramos no barco? Vi-te várias vezes a remar pelos dois, e no conforto da inércia olhava para os teus olhos penetrantes e doces como a cor de mel que os preenchia, para a tua pele morena, para o teu cabelo forte e negro, para o teu sorriso sensual, olhava e confiava que não fazia mal que remasses pelos dois, porque no meu íntimo eu havia de compensar depois...só agora percebo que não podemos compensar o passado.

Na lagoa, de brisa fresca proveniente do arvoredo verdejante que a ladeava, via os barcos como o nosso e nunca me dei ao trabalho de os olhar com atenção, de os analisar e ver neles o nosso espelho. Uns passavam a grande velocidade, com os olhares imbuídos numa pele terna e vivida permaneciam fixos um no outro e o sorriso ainda lhes preenchia a cara, como nós, outrora; outros deambulavam num ritmo incerto e sem direção; outros encontravam-se à deriva, com os remos inertes nas presilhas dos barcos, com musgo a colorir a madeira rasgada pelo tempo. Sempre pensei que, embora o meu desleixo, haveríamos de remar juntos até à eternidade, imaginei que quando não tivéssemos forças, neste caso quando tu deixasses de remar, iríamos estacionar o barco debaixo de um árvore e ali ficaríamos, de olhos fixos um no outro, de sorriso aberto, a perder-nos no tempo da paixão que nos juntou e, lado a lado acompanhávamos o sol a pôr-se.

Hoje, quando acordei, o barco apenas se mexia pela ondulação das águas calmas da lagoa, provocadas pelos barcos que passavam, procurei-te e não te vi, olhei em redor e não te encontrei, tentei vislumbrar onde estarias, mas apenas conseguia ver os barcos a passarem, com casais, de olhos fixos um no outro e de sorriso largo. Levantei-me e olhei para os remos, peguei neles outra vez, como no início e, de pé, com um remo apenas, remei, ora para o lado direito, ora para o lado esquerdo, tentei dar a volta para trás, para te chamar e dizer que lamento, que agora percebo que o barco só anda com duas pessoas a remar, mas a lagoa só tinha um sentido.

Foto - António Tedim
Texto - Rui Santos ( www.cognitare.blogspot.com )

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